domingo, 28 de fevereiro de 2010

João e Eu, palavras ao vento.

Quando era criança, João tinha a estranha mania de falar em frente ao ventilador. Não era incomum encontrar meu eu infantil de cara com esse aparelho pronunciando as mais diversas palavras e, para fazê-lo, experimentando as mais diversas vozes.


Naquela época, eu achava que o ventilador provocava algum efeito sonoro ligeiramente cômico sobre o som que ia de encontro a ele. Ainda que hoje eu não perceba tal efeito, é importante relembrar como nossos eus infantis podem sempre nos ensinar algo. Falar para o ventilador pode ser um prática cuirosamente libertadora, que poderia facilmente ser incorporada à bateria de dinâmicas de algum desses grupos de ajuda - a não ser pelo perigo de ressecamento nas mucosas nasais.


Indo mais longe, poderia dizer que, na verdade, engana-se quem acredita que o ventilador foi feito para refrescar-nos nos momentos de calor; ou, no mínimo, quem batizou esse aparelho aqui em nossa terra tupiniquim já percebera sua capacidade terapêutica. Ele poderia chamar-se "ventilante", "faz vento", "move o ar" e "circulador de ar" (que já é usado em proporções menores, ainda que digam que há uma diferença, a qual, sinceramente, desconheço). O fato é que ele chama-se ventilador. VENTILA-DOR. Essa separação silábica curiosa nos faz entender o porquê da capacidade libertadora desse eletrodoméstico. Falar para o ventilador é, literalmente, jogar palavras ao vento. Mas aqui essa expressão não adquire a conotação depreciativa que lhe é recorrente na fala popular, em poesias e canções. Jogar palavras ao ventilador pode ser uma forma de livrar-se de certas mazelas, de lançar ao vento aquilo que desagrada. O ventilador com sua ágil hélice pode trucidar frases que profrerimos, que nos saem como tempestades, e transformar-lhes em uma suave brisa, ou pelo menos em um pequeno vento refrescante.


Se estivermos sós, o ventilador pode personficar alguém a quem se queira dizer algo, ou, em um momento de estresse, pode ser um ouvinte para palavras demasiado cruéis, as quais ninguém deveria ouvir, uma vez que a palavra dita é como a pedra atirada e a oportunidade perdida, nunca volta. Então, podemos lançar jeitosamente algumas de nossas dores para que sejam ventiladas, mas não machuquem a niguém, percam-se na fúria da hélice e dissipem-se no ar.


Não pense também que o ventilador é um ouvinte apenas de frases ruins, você pode ainda dizer-lhe algo de bom. mas, sinceramente, ele não poderá corresponder a afeição das suas palavras, uma vez que seu comportamento é mecânico e demasiado constante. Se tiver algo de bom para falar para alguém, fale!


Enfim, se precisar xingar, falar mal, esbravejar, por exemplo, utilize o ventilador. Ventile suas dores para serem trucidadas e dissipadas pelo ar. Desabafar faz bem.


2 comentários:

  1. como é que tu pensas nessas coisas? nessas metáforas? Digo e repito: eis aí un genio da literatura intimista. ;DD

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  2. agora mesmo vou dizr umas verdades refrescantes ao meu ventilador.

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